O erro de Ptolomeu, dezanove séculos depois

O erro de Ptolomeu, dezanove séculos depois

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Francisco Fernandes / Ex-secretário da Educação e da Cultura

Cláudio Ptolomeu viveu em Alexandria, Egito, no Séc. II d.C. e compilou os conhecimentos de astronomia da sua época num tratado de treze volumes, o Almagesto (O Grande Tratado), que chegou aos nossos dias pela mão de dedicados eruditos árabes.

Em tal tratado, atribui-se a Ptolomeu a teoria de que a Terra seria imóvel, circulando à sua volta todo o universo. De tal sorte a teoria vingou que só com Copérnico, no Séc. XV, a teoria heliocêntrica (o Sol no centro) foi formulada, sendo seu defensor, no século seguinte, Galileu Galilei, o que lhe valeu uma condenação à morte pela Inquisição, ato do qual só João Paulo II, o Papa que pedia perdão, se penitenciou em Florença, frente ao seu túmulo, embora com 400 anos de atraso.

O erro de Ptolomeu, entretanto esclarecido era, portanto, de que a Terra era o centro do Universo. Permaneceria imóvel enquanto tudo girava à sua volta.

Por que razão desenterrar um erro tão antigo, entretanto esclarecido?

A razão é simples. É que na nossa sociedade o erro de Ptolomeu ainda se repete. Não falando já do planeta Terra, obviamente, nem do Universo propriamente dito, mas de outros “sois” e “planetas” que vamos criando pela forma com que encaramos a vida e com as atitudes que sobre ela e sobre os nossos semelhantes, vamos tomando.

O primeiro centro é o nosso “ego”. A velha história do “primeiro eu, segundo eu, terceiro eu…”. O nosso interesse individual antes do interesse do “universo”. O nosso planetazinho íntimo, central, egoísta, egocêntrico e tão importante.

Olhamos à volta, imaginamos uma imensa meia calote de um enorme globo e nós, lá bem no meio, com os nossos interesses, as nossas preocupações, os nossos sonhos e os nossos objectivos. E tudo o mais está ali à nossa volta, gravitando… A nossa terra, o nosso bairro, a nossa rua, a nossa profissão, a nossa “quinta”, o nosso partido, o nosso clube, são polos de “corporativismo social” com os quais vamos construindo a ilusão de que podem sobreviver fora do mecanismo universal da vida e da sociedade.

Noutra dimensão, os homens foram criando outros “planetas de Ptolomeu” a que batizaram de raça, credo, civilização, cultura, tradição, etc. também eles centros à volta dos quais todos os que não cumpram as condições devem circular, servir, obedecer, sujeitar-se ou adaptar-se.

É esse o argumento que serve de pretexto para guerras, perseguições, genocídios, exílios…

Esquecemos que, tal como a Terra, não estamos imóveis. Giramos sim, e de duas formas. Primeiro sobre nós próprios e é isso que nos dá identidade própria, individualidade, diferença, personalidade. Depois giramos à volta dos outros que, por sua vez, também são individualidades únicas que giram sobre si próprias e à volta de outros que tais. Giram todos num carrossel permanente de interesses pessoais e colectivos, cada um no seu gira-gira sem poder ignorar o girar dos restantes.

Estão a ficar estonteados?

Adaptado da crónica “O Erro de Ptolomeu”, publicada no DN de 26/05/2000, in Cartas de Divagação (2002).

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