O Desporto entre a guerra e a paz: Os Jogos Interaliados, Paris, 1919
Francisco Fernandes / Ex-secretário da Educação e da Cultura
Algumas semanas antes do Armistício (Outubro de 1918) Elwood S. Brown, Diretor do Departamento de Athletic Sports do YMCA americano, com base numa bem-sucedida experiência ocorrida anos antes na Filipinas, então envolvendo americanos, filipinos, chineses e japoneses, lança a ideia da realização de uma prova desportiva de massas aberta aos militares dos exércitos Aliados.
Com a ideia a ser adotada pelo próprio General Pershing, Comandante do Exército Aliado na Europa, o convite é dirigido a 29 países, sendo aceite por 18: Austrália, Bélgica, Brasil, Canadá, China, Cuba, Checo-Eslováquia, França, Grã-Bretanha, Grécia, Guatemala, Haiti, Hejaz, Honduras, Itália, Japão, Libéria, Montenegro, Nicarágua, Terra Nova, Nova Zelândia, Panamá, Polónia, Portugal, Roménia, Rússia, Sérvia, Sião e África do Sul.
Através dos Jogos Interaliados – jogos abertos apenas à participação dos militares dos exércitos Aliados – se faria a transição da Guerra para a Paz, preenchendo-se o vazio em que a guerra deixara o movimento olímpico, então à beira de completar 25 anos, e que motivara o cancelamento dos Jogos da VI Olimpíada, anteriormente previstos para 1916, em Berlim.
Importa analisar a posição do COI que se vê, por um lado, ameaçado com a perspetiva de um evento à dimensão dos Jogos de Londres e de Estocolmo, e com uma possível perda de influência ou, por outro, com uma visão otimista decorrente da possibilidade de valorização do ideal Olímpico, enquanto promotor da paz e da concórdia, potenciando o impacto de futuros Jogos, desde logo os de Antuérpia, programados para 1920.
Noutra perspetiva, interessa aprofundar o caso particular da representação portuguesa, a interação com a comunidade, o envolvimento militar e civil, o impacto junto da comunicação social e a intervenção do associativismo desportivo, matérias que nos levariam a uma exposição mais extensa e que, aqui, apenas afloraremos.
A forma de organização, as infraestruturas, as disciplinas desportivas e os resultados desportivos, completariam a abordagem desta temática em que o Desporto se cruza com a Guerra e com a Paz.
Importa, porém, proceder a uma breve contextualização e referenciação de precedentes históricos.
Remonta a primeira experiência em que o Desporto é um instrumento de transição entre a guerra e a conciliação entre os beligerantes, à guerra Filipino-Americana que, entre 1899 e1902, vitimara cerca de 20.000 militares e 1.500.000 civis.
Terminada esta guerra, Elwood S. Brown, diretor de Educação Física do YMCA, é mandado para Manila (Filipinas), para ver o que poderia ser feito em termos de prática desportiva envolvendo a população civil americana e, mais tarde, cativando os nativos.
Naturalmente que o basebol estava muito em voga entre os civis americanos e os soldados estacionados nas ilhas. No entanto não atraiu, enquanto desporto coletivo, a grande maioria dos filipinos.
Foi com o voleibol que o entusiasmo dos militares americanos e, depois, dos nativos, se desencadeou, quer neste, quer em outros desportos.
Aproveitando o entusiasmo, Brown organiza os primeiros jogos entre Filipinos e Americanos e, em 1912, a pretexto do Desporto, os japoneses entram pela primeira vez na Filipinas. Em 1913 é vez da China.
O desporto venceu a antipatia ancestral entre as três raças.
No espaço europeu, primeiro, e depois à escala mundial, desencadeiam-se os incidentes que conduziram à primeira Grande Guerra.
Em 28 de junho de 1914, o arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono austro-húngaro em visita oficial a Sarajevo, Bósnia-Herzegovina, e sua mulher, foram assassinados durante um desfile, por um estudante bósnio em protesto contra o domínio austro-húngaro. Este episódio foi a espoleta do conflito bélico que se seguiu.
As tropas austro-húngaras, como represália, invadem a Sérvia. Em resposta, a maioria dos países europeus mobilizou-se. A Rússia, aliada da Sérvia, mobilizou seus exércitos para a guerra.
A Alemanha declara guerra à Rússia e à França. Por sua vez, a Inglaterra declara guerra à Alemanha, enquanto a França invade a Bélgica.
Logo de seguida, e tudo isto em menos de uma semana, o Império Austro-Húngaro declara guerra à Rússia. Ficam criados dois blocos: de um lado o Império Britânico, a França, o Império Russo (até 1917, devido à revolução bolchevique) e os Estados Unidos (a partir de 1917) e, do outro, o Império Alemão, o Império Austro‑Húngaro e o Império Turco‑Otomano, envolvem-se num conflito que dura até 11 de Novembro de 1918.
Portugal, inicialmente neutral, acaba por se envolver no conflito após, sob influência britânica, ter apresado barcos alemães que se encontravam em águas portuguesas. Em consequência, em 9 de março de 1916, a Alemanha declara guerra a Portugal.
No esforço de guerra Português, foram mobilizados 200 mil homens, saldando‑se em perto de 10 mil o número de mortos. A unidade nacional saiu comprometida e a instabilidade política acelerou.
A organização dos VI Jogos Olímpicos, em 1916, havia sido atribuída à cidade alemã de Berlim. Todavia, o quadriénio olímpico não pôde ser respeitado devido ao eclodir da Guerra, que envolveu 28 países, apesar de Guilherme II ter tentado, em vão, uma trégua olímpica que permitisse a realização do evento em duas semanas. Apesar disso, foi possível reunir na Sorbonne, em Paris, os representantes dos países beligerantes e celebrar, olimpicamente, o vigésimo aniversário do Comité Olímpico Internacional.
Calcula-se em 9 milhões o número de mortos, e em 30 milhões, o número de feridos contabilizados no final da Primeira Guerra Mundial.
Em 1918, o já mencionado Elwood S. Brown, diretor de Educação Física do YMCA, integrava o exército americano na Europa. Brown vê no exército Aliado multidões de homens ligados por ideais comuns, mas espalhados pela Europa. Acreditou que, depois da vitória, eles deviam estabelecer amizades mais duradouras que contribuíssem para construção de uma paz duradoura.
De que maneira poderiam esses homens ser reunidos de forma mais harmónica e natural? A resposta pareceu-lhe óbvia: como atletas!
A partir desta ideia inicial, não foi difícil convencer o General Pershing, o comandante supremo das forças aliadas, que logo anuiu à proposta e convidou os países Aliados a aderir aos Jogos Atléticos Interaliados que se realizariam no Colombus Stadium, nos arredores de Paris, em junho de 1919.
Em Portugal, porém, não obstante a pronta aceitação do convite, instala-se a polémica quanto à constituição das equipas… É a comunicação social que acaba por liderar a contestação e é desta que partem as propostas no sentido de ver a representação portuguesa reforçada.
Recorde-se que os jogos eram dirigidos aos militares e que nem todos os desportistas de eleição tinham sido mobilizados, isto é, não eram militares. É então que surge a ideia lançada pelo jornal “Os Sports”: “Se os nossos melhores esgrimistas não estão mobilizados, que de qualquer forma se arranje maneira de os militarizar, como se está fazendo em outros países”.
A posição defendida pelo jornal “Os Sports” acaba por vingar e são atribuídas patentes militares aos nossos melhores esgrimistas, a fim de poderem integrar a representação portuguesa aos jogos. De um número considerado elevado de potenciais participantes, caminhou-se para uma representação mais razoável e adequada a um país exangue e vítima do esforço de guerra. Deste modo vão a Paris 47 atletas em vez dos 80 inicialmente previstos. Em particular no caso da esgrima, a equipa final é a que foi proposta pelo referido jornal e não a inicialmente proposta pelas estruturas militares.
Deste modo, de 22 de junho a 6 de julho de 1919, sete meses após o Armistício, os Jogos Interaliados são a primeira manifestação desportiva internacional do pós-Guerra. Das dezoito nações participantes, chegam a Paris cerca de 1500 atletas.
Os jogos Interaliados – Jogos de Pershing como ficaram também conhecidos – sucedem aos Jogos Olímpicos de 1916, que não se realizaram por motivo da coexistência com um período de guerra à escala do planeta, e anunciam os 1920, em Anvers.
Qual a relação do movimento olímpico internacional face a esta iniciativa americana em território francês? A literatura disponível coloca duas hipóteses: Ou foram encarados como uma expressão do ideal olímpico, ou foram considerados uma ameaça à organização de Coubertin.
O silêncio inicial do COI e do seu presidente apontam preferencialmente para a segunda possibilidade, tanto mais que o COI estava particularmente empenhado na organização dos Jogos de Anvers, previstos para o ano seguinte, os quais deveriam representar o renascer do brilhantismo das duas últimas edições. Porém, Coubertin, doze anos depois, nas suas Memórias Olímpicas, admite que o evento teve, para ele, o valor de um teste para o primeiros jogos do pós-guerra que acabaram, como previsto, tendo lugar em Anvers, em 1920.
A competição desportiva nos Jogos Interaliados procurou ser um sucedâneo ao processo beligerante que há pouco terminara. O Desporto cumprira o seu desígnio de concórdia e harmonia, não obstante o recente conflito e o espírito bélico não estarem completamente ausentes, ainda que entre forças aliadas no campo de batalha, verificando-se que, pontualmente, a competição revelou processos complexos de identificação social e patriótica, que conduziram alguns atletas a ultrapassar os limites da regulamentação desportiva, de que foi exemplo, a final do jogo de rugby entre a França e os Estados Unidos, que terminou em pugilato.
A este propósito Alan Muhr, La vie au grand air (1907), já havia sido bem eloquente, referindo-se ao Desporto: «Isto é o que se pode fazer de melhor, sem espadas e revólveres».
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