Desporto no feminino
Francisco Fernandes / Ex-secretário da Educação e da Cultura
Um artigo recente da Patrícia Gaspar sobre as mulheres no futebol deu-me o mote para esta reflexão a propósito do desporto no feminino, em grande parte motivada por memórias pessoais, colhidas enquanto treinador de basquete feminino que fui, e em algumas investigações desenvolvidas em matéria de olimpismo na Madeira.
O tempo encarregou-se de tornar desatualizadas as culturas sociais que condenavam e obstaculizavam a prática do desporto às mulheres, mas não apagou a sua história.
A prática, entre nós, do desporto feminino de competição deu os seus primeiros toques na bola de basquetebol nos anos 70, num tempo em que, por vezes, era necessário ludibriar as famílias para poder treinar, jogar ou, simplesmente vestir um equipamento desportivo, o qual começou por ser muito recatado, recolhendo as modas da ginástica sueca praticada nas escolas.
Aos poucos a prática foi crescendo e o desenvolvimento desportivo do período pós-autonómico ditou novas formas de encarar as mulheres no desporto. Mas só a partir dos anos 90 é que foi entendido que os apoios públicos ao desporto feminino deviam acompanhar os do desporto masculino. A visão estratégica do desporto regional cedo concluiu que era neste sector que a Madeira se poderia impor em termos nacionais, já que o investimento nacional no desporto feminino de competição era muito incipiente.
Desse entendimento resultou, já neste século, de um momento único em que a Madeira inscreveu o seu nome na lista de campeões nacionais femininos, no mesmo ano, em andebol, basquetebol e voleibol.
Porém, a leitura do mais recente censo da demografia federada regional denuncia uma relação altamente desfavorável ao desporto feminino quando regista que, dos 14.457 atletas federados da época 2011/2012, apenas 3.814 (26%) são mulheres.
Fazer a história do desporto no feminino não caberia aqui, mas não podemos deixar de registar alguns momentos significativos quer do ponto de vista negativo, quer positivo. O prestigiado jornalista Raul de Oliveira que foi diretor de Os Sports e enviado do Diário de Notícias aos Jogos Olímpicos de Amsterdão/1928, referia-se em termos depreciativos à participação de mulheres no desporto, nestes termos:
“Hoje também tivemos meninas no campo. Deitaram fora o último cigarro e envergaram pudicamente umas calças de homem para aparecerem no estádio.
Saltitam aqui e além para aquecer os músculos. Algumas são magrinhas e confundem-se facilmente com o bicho macho.
A luta entre as pequenas é uma coisa épica, absolutamente à maneira dos homens (…).
(…) Mas protesto e protestarei sempre contra este espectáculo inestético e nada feminino das mulheres correrem e saltarem como os homens. Protesto e protestarei sempre contra esta nova espécie de macho-fêmea e contra quem as tolera, contra quem as aplaude, contra quem lhes deu acesso ao terreno, onde apenas deve imperar a virilidade dos homens. E àqueles que não concordarem comigo direi apenas que se lembrem do respeito que devem às suas mães.”
Uma pérola! Maria Luisa de Herédia (1905-1961), filha do primeiro olímpico madeirense, Sebastião Herédia, e neta do visconde da Ribeira Brava, foi, juntamente com a tenista Angélica Plantier, uma das primeiras mulheres a integrar uma comissão técnica do COP. É interessante ler o que então escreveu na defesa de uma participação olímpica das mulheres portuguesas nos Jogos Olímpicos de 1936.
“A representação feminina no Comité Olímpico Português – Tenho de abrir um parêntese na seqüência do assunto de que tenho vindo a falar, porque não posso deixar de me referir a um facto que se torna interessante, por ser a primeira vez que sucede na História do Desporto em Portugal.
É a participação feminina no Comité Olímpico Português, tendo como representantes a nossa distinta desportista e consagrada campiã de “tennis”, Angélica Plantier, e a minha humilde pessoa.
Esta nossa nomeação foi baseada sôbre informações fornecidas pelas Federações consultadas, em que pessoas dedicadas nos distinguiram, reconhecendo o nosso culto pelo desporto e a nossa vontade de pugnar tenazmente para o seu engrandecimento.
Pode-se dizer que encetamos uma empresa onde tudo está ainda para ser feito e até mesmo para ser pensado, com isto referindo-me à participação feminina nas competições Internacionais Olímpicas.
Sim, porque Angélica Plantier e eu, sentimo-nos moralmente comprometidas a fornecer elementos femininos dignos de nos representarem nas próximas Olimpíadas de 1936. Vamos, sem dúvida, embrenhar-nos num caminho espinhoso e íngreme, que só poderá ser trilhado com muito entusiasmo, dedicação e persistência, mas sentir-nos-emos plenamente recompensadas da nossa tarefa se nos pudermos orgulhar de ter içado o Pavilhão Nacional no cimo dessa ladeira, que levará pelo menos quatro anos a subir.
Nos passados Jogos Olímpicos quási todos os países apresentaram concorrentes femininas, e até mesmo uma numerosa falange.
Porque não há de suceder o mesmo a Portugal, país privilegiado pela sua situação no globo, acarinhado pela Natureza que o dotou de um clima ideal e pelo Sol que o enriquece de saúde?!
É necessário demonstrar perante o Mundo que as raparigas portuguesas são saudáveis, são bem constituídas, são dextras na cultura física e desportos.
É necessário criar o intercâmbio desportivo com outros países, organizar encontros sucessivos com os vários clubes estrangeiros, vincar o prestígio de Portugal e da Mulher Portuguesa!
É êste o fim a que nos propomos com a nossa entrada no C.O.P. e não pouparemos esforços para conseguir fazer uma propaganda intensa em prol do desporto feminino, que vá acordar, fortalecer e libertar as energias que estão em repouso, mas de que as raparigas portuguesas são ricamente dotadas” (Maria L. de Herédia, 1932).”
Importa ainda referir a este respeito que “A igualdade de oportunidades (ou a falta dela) na participação olímpica, tal como no desporto em geral, radica, em parte, na reduzida representação das mulheres em órgãos de decisão e, consequentemente, na falta de poder directo das mulheres. O poder não é ter a hipótese de escolha de um determinado número de alternativas, mas sim ter a hipótese de estar envolvido/a na formulação dessas alternativas.
Só em 1981 é que o COI integrou, entre os seus membros, as primeiras duas mulheres, e apenas em 1997 uma mulher alcançou a vice-presidência. Salienta-se o trabalho desenvolvido por Anita De Frantz – Vice-presidente do COI entre 1997 e 2001 – no sentido do alcance de uma igualdade de oportunidades entre homens e mulheres em todo o movimento olímpico.
Em 1995, o COI cria um grupo de trabalho denominado ‘Mulheres e Desporto’ (Women and Sport) que estabelece as linhas orientadoras para o desenvolvimento de medidas em prol de uma maior participação das mulheres no desporto e no movimento olímpico. Em 2004, este grupo passa a ter o estatuto de Comissão, ao mesmo nível de todas as outras.
Também na Carta Olímpica foi incluído, em 1996, o seguinte artigo (n.º 5, artigo 2): “Através dos meios apropriados, o Comité Olímpico Internacional encoraja a promoção das mulheres no desporto em todos os níveis e estruturas, particularmente nos organismos executivos das organizações desportivas nacionais e internacionais no sentido da estrita aplicação do princípio da igualdade entre homens e mulheres.” (Cruz, I., Gomes, P. e Silva, P.,2006, Deusas e Guerreiras dos Jogos Olímpicos, Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres, Coleção Fio de Ariana).