O que se passou em Paris esta semana, com o assassinato a sangue frio de 10 jornalistas da polémica publicação francesa “Charlie Hebdo” retirou os franceses da passividade idiota em que por vezes, muitas vezes, mergulham, no que à tolerância em democracia diz respeito, fazendo-os enfrentar de forma dolorosa a dura realidade da vulnerabilidade de um Estado forçado a olhar de forma pragmática para a violência e a ousadia de tudo o que se passou.
Sabem os que acompanham mais de perto esta problemática que o “Charlie Hebdo”, politicamente conotado com a esquerda radical, mantem há muitos anos uma linha editorial de crítica contundente do estado, do regime político, dos governantes franceses e mundiais, mas que privilegia também, através das suas polémicas primeiras páginas, uma clara aposta na crítica à religião e à Igreja.
O problema é que se é verdade que o crime de Paris ressuscitou a discussão em torno dos limites, sim ou não, da questão da liberdade de imprensa, sobretudo no seu confronto com o terrorismo, por outro está instalada também o debate, e alguma confusão, sobre qual a relação entre a liberdade de imprensa, a liberdade religiosa e a eventual necessidade de não envolver as questões religiosas, de uma forma tão acentuada, no modelo de críticas contundentes e do ridículo formalizado com recurso a cartoons que de inocentes não têm nada.
Admito que a sociedade democrática ocidental, porque se rege pelos princípios democráticos mais elementares – entre os quais o respeito pela liberdade de imprensa, provavelmente a níveis não tão rigorosos como o respeito pela liberdade e pelas opções religiosas dos povos – reaja com indiferença relativamente a posturas semelhantes à do “Charlie Hebdo” – salvo alguns sectores minoritários mais radicalizados. Mas sabemos que no caso dos muçulmanos, particularmente das vertentes mais radicais da sociedade islâmica, o problema muda de figura e a margem de tolerância é diminuta ou quase nula, quando a religião, o Corão e o profeta Maomé são atacados ou ridicularizados. Há duas formas de encarar a crítica à religião, duas formas diferentes de responder as quem opta por essa via. Não há que escondê-lo
A publicação francesa em causa há muito que tinha sido ameaça, aliás em linha com outras publicações, na Holanda e na Dinamarca, identificadas com a mesma linha editorial. Tudo por causa da ousadia de me meterem com situações “proibitivas”. Em Portugal não temos neste momento em circulação nenhum jornal comparável ao “Charlie” o que dificulta a perceção do que se passa por parte da maioria das pessoas. Estamos a falar de um jornal criado em 1970, que em 2012 esteve envolvido em grandes polémicas com sectores muçulmanos mais radicais, depois da publicação em primeira página de vários cartoons. Depois de um interregno entre 1981 e 1992, devido a dificuldades financeiras, o “Charlie Hebdo” alcançou fama mundial ao republicar as caricaturas de Maomé feitas pelo jornal dinamarquês Jyllands-Posten, em 2006. Em Novembro de 2011, a redação da revista foi destruída com uma bomba incendiária.
Não vale a pena alinharmos em manifestações de consternação ou de protesto, que nada resolvem, só porque os acontecimentos assumem uma determinada dimensão. Não me lembro de ver qualquer manifestação pública do género em Paris quando jornalistas foram degolados pelo Estado Islâmico. Não me lembro de uma reação tão organizada e sintonizada a esta escala quando mais de 70 jornalistas foram assassinados em 2014, todos eles vítimas de radicalismos políticos ou religiosos.
Por outro lado, há claramente uma linha vermelha que faz com que a atitude, normal e natural da sociedade francesa e de outros países ocidentais, esbarre com a realidade que hoje alimenta o radicalismo islâmico e a reação popular alimentada por sentimentos religiosos mais radicalizados e menos tolerantes. O Estado Islâmico, espelho do terror e da violência sanguinária veiculada por parte de alguns sectores muçulmanos mais radicais, classifica de “heróis” os autores de um atentado que a polícia francesa persegue ferozmente, que provavelmente os abaterá sem contemplações e os franceses, sobretudo estes, acham que são indignos de qualquer tolerância e de viver entre eles.
E o essencial de tudo isto? Estará a liberdade de imprensa realmente ameaçada? Terá o “Charlie” desvalorizado uma realidade que porventura teria obrigado a medidas preventivas que porventura foram descuradas? Pode a liberdade de imprensa tratar da mesma forma as questões políticas de um estado ou os protagonistas de um regime e as matérias de natureza religiosa quando neste caso a intolerância é excessiva e radicalizada? Confesso que não tenho respostas, até porque liberdade de imprensa, para mim, sempre foi um conceito inegociável em democracia. Sigo com interesse tudo o que vem sendo feito e dito sobre este tema, sem que até este momento tenha retido algo de concreto e de útil. Apenas emotividade que não impede que situações como esta se repitam seja lá onde for. Mas estaremos a falar realmente de sociedades democráticas na sua plenitude e de acordo com o padrão ocidental? Estaremos a falar de seguidores das regras elementares de uma democracia na sua plenitude?
Lembro que Charb, o assassinado diretor disse que não iria suavizar nem o seu discurso nem os seus desenhos: “É preciso continuar até que o islão seja tão banal como o catolicismo”. Biard, chefe de redação, explicou a postura do “Charlie” quando o assunto é a religião: “Somos um jornal que é contra as religiões assim que elas entram nos domínios público e político”. A minha questão de fundo é esta: o que é que ganhou o “Charlie” como massacre de 10 dos seus jornalistas assassinados de forma tão bárbara? O que é que ganhou a liberdade de imprensa com este crime em Paris?