Estou sentado em frente à praia, em Santa Cruz. O dia nasceu magnífico. O ano nasceu magnífico. O mar é de Verão. Apetece descer o areal e mergulhar.
(À minha volta, toda a gente dorme)
A Patrícia pediu-me para escrever um texto de opinião até dia 5. Confesso, fiquei entusiasmado por poder dar um pequeno, ínfimo, contributo ao projeto da Patrícia e do Sérgio. Porque gosto deles.
Pensei escrever sobre política, sobre o Miguel e o Víctor e o Zé e o Roberto e o Edgar, mas são 10 e tal do primeiro dia de 2015 e o sol está aberto e da esplanada, vejo a linha de costa até Peniche. O mundo está em paz. Até o combate mais acirrado exige tréguas, de quando me vez, e as tréguas servem para pensarmos na pertinência dos combates que travamos.
(À minha volta, toda a gente dorme. Com exceção dos três cães da casa, já em roda viva).
Também me passou pela cabeça fazer uma antevisão do ano que começou, misturando os meus parcos dotes advinhatórios com alguma dose de cinismo e com um pouco de experiência de vida.
Alguém corre na praia. As ondas sucedem-se. Diz-se que a sétima é sempre a maior mas ninguém nos diz quando começa a contagem. Hoje, fazer a antevisão do ano seria como descobrir qual a sétima onda sem saber, sequer, qual foi a primeira.
(Sinto frio nas mãos. Com a idade, começa-se a sentir mais frio. Sobretudo nas mãos, quando se insiste em mante-las desprotegidas.)
O texto está bom, mas não é objetivo, disse-me o meu pai, quando há uns dias lhe mandei um artigo para que me desse a sua opinião. Era verdade. Tão verdade, como a minha falta de vontade em muda-lo. Para me defender, lembrei-me da Clarisse Lispector:
“O que me tranquiliza é que tudo o que existe, existe com uma precisão absoluta. O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete não transborda nem uma fracção de milímetro além do tamanho de uma cabeça de alfinete. Tudo o que existe é de uma grande exatidão. Pena é que a maior parte do que existe com essa exatidão é-nos tecnicamente invisível. Apesar da verdade ser exata e clara em si própria, quando chega até nós torna-se vaga, pois é tecnicamente invisível. O bom é que a verdade chega a nós como um sentido secreto das coisas. Nós terminamos adivinhando, confusos, a perfeição”.
O texto, pai, justifica-se por si próprio. A Clarisse, pai, esclarece as minhas fugas à objetividade e à exatidão absolutas. Porque a verdade não as exige e eu, em abono da própria, não pretendo mais do que a minha verdade, ou antes, não quero mais do que ser honesto comigo.
Primeiro de Janeiro de 2015. O mundo está em paz. No areal, alguém observa as ondas que se sucedem, observando assim a vida a acontecer. Olhar para as ondas é sair de nós. É como pairar sobre o mundo e de fora, mirar a eterna sucessão de acontecimentos, sempre iguais sob diferentes roupagens.
Uma criança passeia um cão pachorrento. Leva um pau na mão, para o atirar. O cão irá agarrá-lo e devolvê-lo. A criança voltará a atirar o pau. O cão correrá, apanha-lo-á no ar e devolve-lo-á. A criança repetirá o gesto inicial. O cão agirá como é suposto. Criança, cão, mulher são a prova do eterno retorno.
Há objetividade na sucessão de ondas que a mulher observa? Há objectividade no próprio ato de observa-las? A objetividade está no cão que corre atrás do pau ou na criança que o atira? Não sendo objetivos, não serão todos estes acontecimentos verdadeiros?
Não será este texto tão verdadeiro como o ano que nasceu? Tão verdadeiro como o pau atirado, como a criança que o atira, como a mulher bonita que observa as ondas, como a costa recortada que faz Peniche parecer tão perto, como o sol que agora me aquece as costas, como o casario branco que cerca a praia, como o cigarro que acendo?
Primeiro de Janeiro de 2015. O dia nasceu magnífico. O ano nasceu magnífico. O mar é de Verão. Apetece descer o areal e mergulhar. O mundo está em paz. Deixemos a humanidade à sua ordem natural, como dizia o Almada Negreiros. Porque “a única maneira de equilibrar a esfera no ar é deixa-la estar no ar como a pôs Deus Nosso Senhor, às voltas à roda do sol, como a lua às voltas de nós e assegurada contra todos os riscos dos disparates da humanidade”.
Desculpem, Patrícia e Sérgio, se este texto não se enquadra nos pressupostos . Prometo ser mais objetivo nos próximos, mas não sei se tão verdadeiro.