A condição humana que nos une e as marcas civilizacionais que o tempo vai acrescentando em cada geração, passam pelo reconhecimento dos feitos e dos méritos dos que nos antecederam, e que hoje são algo do que somos enquanto cidadãos, seja em que áreas tenham sido, parte da nossa memória coletiva e da nossa matriz social.
A atenção que vimos dedicando à coisa desportiva e aos seus agentes é parte integrante deste princípio, ou não fosse o desportista, e em particular o atleta olímpico, o arquétipo do que de melhor a condição humana pode construir no caminho da perfeição, aquele que vai mais longe, mais forte e mais rápido, na senda da conjugação perfeita entre corpo e mente, quaisquer que sejam as particularidades que essa condição apresente, na construção da linguagem universal que apenas o Desporto atinge.
Daí que celebrar o olimpismo e os princípios que Coubertin idealizou, é um propósito que não prescinde de lembrar aqueles que, pela sua prática, atitudes, entrega, superação e fair-play, melhor os interpretaram.
Por maioria de razão, a conjugação da nossa dimensão insular com o cosmopolitismo da nossa vivência, encontra no desporto e na superior prática olímpica, uma bandeira que só o conhecimento dos factos e a dimensão histórica dos seus intérpretes, permitem concretizar.
Falar do olimpismo de há um século e da prática desportiva que conduzia às representações olímpicas de então, é penetrar num mundo de contornos muito diversos daqueles com que hoje nos relacionamos, mas determinante para percebermos o presente, e projetarmos o futuro.
Vem este introito a propósito da já tardia referência e merecida valorização que é devida ao primeiro olímpico madeirense, Sebastião Herédia, sobre o qual ainda pouco se escreveu e, ainda menos, se divulgou.
Em boa verdade, Sebastião Herédia não nasceu na Madeira, embora a sua família estivesse radicada na ilha desde o século XVII (o primeiro deste apelido que se estabeleceu na Madeira foi António Herédia (c.1560-1624) o qual, em 1602, é aqui colocado para dirigir a guarnição espanhola instalada na fortaleza de São Lourenço, ao tempo do domínio Filipino). Filho de Francisco Correia Herédia, Visconde da Ribeira Brava, e de Joana de Macedo, Sebastião Herédia nasceu, circunstancialmente, no Porto, em 1876, e faleceu em Lisboa em 1958. Porém, viveu na Madeira, tendo sido, inclusive, seu governador civil, e aqui fez parte da sua prática e formação desportiva.
A ascendência direta revela uma ligação muito estreita às práticas desportivas de que seu pai, o visconde da Ribeira Brava, foi exímio intérprete, desportista de referência na esgrima, no tiro e em várias outras disciplinas desportivas.
A história da participação olímpica de Sebastião Herédia está recheada de episódios mais ou menos rocambolescos e alguns equívocos em que a literatura atinente tem incorrido, só possíveis no contexto desportivo e social da época, e os quais importa clarificar.
Encontram-se referências à possibilidade da participação olímpica de Sebastião Herédia desde Paris-1896, precisamente a primeira edição do J.O., o que, a concretizar-se, teria sido um marco extraordinário para o desporto português.
A literatura disponível permite localizar diversos registos quanto a uma eventual tentativa de participação de Sebastião Herédia, na modalidade de Ciclismo, na 1.ª edição dos Jogos Olímpicos da Era Moderna, como algo que foi falado, mas não concretizado. As referências feitas a essa possibilidade apresentam-se vagas e insuficientemente comprovadas, sem deixar de reconhecer, no entanto, de que se trata de algo plausível. A Associação de Atletas Olímpicos de Portugal, na sua publicação Olímpicos de Portugal (1912-2008), no espaço dedicado a Sebastião de Freitas Branco Herédia (p. 256), embora incorrendo na confusão dos perfis desportivos de Sebastião Herédia (pai) e Sebastião Herédia (filho), recorda: “Com o ciclismo dando os primeiros passos, tornou-se [Sebastião Herédia] uma das suas principais estrelas nas corridas de Paris.
Venceu algumas delas e o seu nome chegou a ser dado para representar a França na primeira edição dos Jogos Olímpicos, em Atenas-1986, mas ele era… português”. Já Serpa, H. (História do Desporto em Portugal – Do século XIX à Primeira Guerra Mundial. Lisboa: Instituto Piaget, p. 139, 2007) ao descrever a impossibilidade (por ser profissional) de participação olímpica do ciclista Bento Pessoa, em 1896, recorda: “Quem chegou a ser falado como candidato aos Jogos foi Sebastião Herédia, adversário de Bento Pessoa nas provas caseiras. Mas esta candidatura não terá passado de uma ideia sem praticabilidade”.
É necessário recuar ao final do século XIX a um momento em que ainda não havia sido criada a União Velocipédica Portuguesa. Por esse facto os ciclistas portugueses que pretendiam praticar a modalidade a nível internacional tiveram que se inscrever na União Velocipédica Espanhola, com a anuência ou por imposição da UVI. Foi o caso de Sebastião Herédia e outros, como refere Barroso (2001).
Por sua vez, Santos (2012), colaborador do Jornal Horizonte, e considerado um dos maiores conhecedores da história do ciclismo português, referindo-se a Sebastião Herédia, afirma: “Também Sebastião Herédia conseguiu a proeza de, em 23 corridas que fez em Paris, ganhou vinte primeiros lugares, colocando a União Velocipédica Espanhola, onde estava inscrito por falta de uma congénere portuguesa e por determinação superior da União Velocipédica Internacional, em destacado plano na prática do ciclismo de competição”.
D. Sebastião Herédia (1890?).
Fonte: UVP-FPC, 100 anos (1999).
Ora, sendo Sebastião Herédia, apesar de Português, ciclista inscrito na UVE, e nessa qualidade tendo participado e dado nas vistas nas corridas disputadas e ganhas em Paris, é natural que ambicionasse uma participação em Atenas-1896. Acontece que Espanha não participou nos primeiros Jogos Olímpicos da Era Moderna. Não nos custa, portanto, admitir que Sebastião Herédia se tivesse predisposto a integrar a seleção francesa, o que seria impossível de concretizar por ser português. Gorou-se, desta forma, a possibilidade de um atleta português ter participado na primeira edição dos Jogos Olímpicos.
Paris-1900 acolhe a segunda edição dos J.O., ocorrendo em simultâneo com a Exposição Universal Paris-1900, coincidência que Valarinho (1993), assim descreve: “1900 foi também o ano dos segundos Jogos Olímpicos os quais foram englobados na gigantesca Exposição Universal de Paris. Assim, o patrocínio do Comité Internacional Olímpico quase nem chegou a ser notado, de tal forma que grande parte dos concorrentes às várias competições desportivas não tinham consciência de que era nos Jogos Olímpicos que estavam a tomar parte.
Foi certamente o caso de Sebastião Herédia e de António Martins que, ao inscreverem-se no Torneio Internacional de Espada de Paris, desconheciam, como a nossa imprensa também desconhecia, que esse torneio fazia parte das competições de esgrima dos Jogos Olímpicos. Herédia, cuja aprendizagem decorreu nas salas de armas parisienses inscreveu-se na prova para amadores tendo sido colocado numa ‘poule’ em que se encontravam Renault, Philibert, Onesti, Subercaseaux, Peberay, e o grande campeão cubano Ramon Fonst que tinha então apenas dezasseis anos e que viria a ser o vencedor. Martins, inscrito na competição destinada a professores teria como adversários na sua ‘poule’ Bézy, Gracviche, Samiac, Chauderlot e Pernot.
Segundo os jornais da época ‘foi pena que nem um nem outro dos portugueses tivessem comparecido’. António Martins, como profissional, não viria a ter outra oportunidade e Sebastião Herédia teria de esperar nada menos que vinte e oito anos para estar presente nuns Jogos Olímpicos”. Portanto, e uma vez mais, Sebastião Herédia viu frustrar-se uma nova oportunidade de participação olímpica, desta feita por mero desconhecimento em relação aos moldes da competição.
Em relação à participação de Portugal em Londres-1912, a mesma esteve sempre rodeada de incertezas, de uma forma geral relacionadas com os recursos financeiros disponíveis, circunstâncias assim abordadas por Cardoso (1993): “O comité tratou de dar corpo às funções que lhe estavam atribuídas. Diligenciar para que uma delegação portuguesa se inscrevesse nos Jogos, fazer essa mesma selecção e angariar o dinheiro para a deslocação. Com base no desempenho nos Jogos Olímpicos Nacionais, foram escolhidos dez atletas. A 26 de junho de 1912, a bordo do vapor ‘Astúrias’ da Mala Real Inglesa, que larga de Lisboa com destino a Southampton, vão as esperanças nacionais ou, talvez melhor, lisboetas, de um desempenho condigno nessa quimera que representavam os Jogos Olímpicos. Mas dos dez iniciais, quatro ficaram-se realmente pelos sonhos.
A sorte foi-lhes madrasta quando já tinham tudo preparado para a viagem. O dinheiro, o último ‘se’, não havia maneira de aparecer. O Governo Civil de Lisboa declarara alto e bom som: “se quiserem ir arranjem dinheiro”. Já em jeito de desespero, foi organizado um sarau desportivo no Coliseu para a noite de 22 de Junho (quatro dias antes do embarque!). Para desventura de César de Melo (luta), D. Sebastião Herédia (esgrima), Matias de Carvalho (1500 m e maratona) e Correia Leal (400 m), o pessoal dos elétricos entrou em greve e o Coliseu ficou quase vazio… Não fora, para lá de donativos particulares, a ajuda da família Pinto Basto – que forneceu as passagens – e ainda verbas obtidas em agremiações desportivas e ninguém teria ido.
A 26 lá partiram Fernando Correia (espada), chefe de delegação, António Stromp (100 e 200 m), Armando Cortesão (400 e 800 metros), Francisco Lázaro (maratona), Armando Pereira e Joaquim Vital (luta)”. E, assim, pela terceira vez, Sebastião Herédia perde a possibilidade de estar nos J.O.
Após um interregno de muitos anos, chegamos a Amsterdão-1928. Não obstante o pessimismo reinante em Lisboa, em 1928, quanto à possibilidade de participação de uma equipa de esgrima, o que fica bem evidente nos relatos de imprensa da época, em grande parte devido a ocorrências e rivalidades entre as várias ‘salas’, ocorridas durante os apuramentos, acaba por ser constituída uma equipa olímpica: Jorge Paiva e Mário Noronha (sala Carlos Gonçalves), Frederico Paredes, Henrique da Silveira, João Sasseti e Sebastião Herédia (do Centro Nacional de Esgrima).
É então que ocorre um ato de notável desportivismo de Sebastião Herédia, nesta que era a sua quarta tentativa de participar numa edição dos Jogos Olímpicos, assim relatado por José Valarinho: “Muito desportivamente, Herédia, que é o mais velho dos selecionados [na altura tinha já 52 anos], achando que a presença de Eça Leal reforçaria consideravelmente a equipa, põe o seu lugar à disposição do atirador que se encontra na Argentina. A oferta é aceite pelo Comité Olímpico que, em compensação, nomeia Sebastião Herédia chefe de equipa e inscreve-o na competição individual de Florete.
Com a representação em Florete dada a Sebastião Herédia, Paulo d’Eça Leal integra a equipa de esgrima. Embora não possamos ser perentórios numa conclusão de causa/efeito a partir da atitude de Sebastião Herédia, há que recordar que esta equipa de esgrima conquistou a medalha de bronze e que foi, precisamente, Paulo d’Eça Leal que deu a um atirador belga o toque que permitiu a Portugal a conquista do terceiro lugar e respetiva medalha de bronze olímpica.
Na sua análise a esta participação, Valarinho (1993) prossegue: “Desta forma Sebastião Herédia faz, juntamente com seu filho que concorre em Pentatlo Moderno, a sua estreia nos Jogos Olímpicos, naquela que foi a primeira e única vez na história das representações olímpicas portuguesas em que pai e filho participaram nos mesmos Jogos”.
Quanto à participação propriamente dita, relata O Século: Dos nossos atiradores presentes em Amsterdão é Sebastião Herédia o primeiro a entrar em ação. Tem já cinquenta e dois anos e vai jogar florete, quando todo o seu treino tinha sido orientado para a espada. Não pode, por isso, ter grandes ambições. A sua ‘poule’ é de oito atiradores dos quais passam à fase seguinte apenas três. Tendo conseguido somente três vitórias, o nosso representante classifica-se em quinto lugar e já não vai mais além”.
O enviado de O Século acha, contudo, que: “ (…) êle foi arredado quando devia ter apenas dois homens que lhe eram superiores, o vencedor da ‘poule’ que foi o italiano Pignotti, e o belga Pecher. No entanto, a tremenda influência de um julgamento caprichoso dispôs a sua eliminação. E mais de um assalto foi vítima dos juízes”. No mesmo sentido relata o Diário de Lisboa: “Sebastião Herédia (pai) classificou-se em 4.º lugar na esgrima, fazendo bons assaltos, mas, segundo a opinião dos técnicos, foi prejudicado na decisão do júri”.
Em entrevista concedida ao Diário de Lisboa, o Mestre de Esgrima Veiga Ventura refere-se nestes termos à prestação de Sebastião Herédia: “Herédia, pai, que é o capitão da nossa ‘équipe’, tendo-se treinado à espada, concorreu ao florete. A sua classificação, porém, não correspondeu aos seus méritos. Estou convencido de que teria feito uma figura brilhante na espada”.
Terminou aqui a prestação Olímpica de Sebastião Herédia, que não a sua prática desportiva, já que em 1931, é descrito um longuíssimo assalto de cinquenta e sete minutos, frente a Mascarenhas de Menezes, no Campeonato Nacional de Florete, quando já contava com cinquenta a cinco anos e, ainda nesse ano, no Portugal-Inglaterra, disputado em Londres, onde obteve três vitórias, naquilo que o Morning Post relatou nestes termos: “Nunca Londres viu um match mais belo (…)”.
PS: Tarda em concretizar-se a atribuição à Sala de Esgrima do Funchal, construída pelo IDRAM na E. S. Jaime Moniz (entidade detentora de um acervo de armas e equipamentos que foram pertença de Sebastião Herédia) a designação de “Sala de Armas Sebastião Herédia”, ideia que é do agrado da Associação de Esgrima da Madeira, e constituiria uma merecida homenagem ao nosso primeiro olímpico.
Bibliografia consultada:
Cardoso, C. P, 1996, Os Jogos Olímpicos, Lisboa: CTT – Clube do Colecionador.
Pinto, A. S.,1883, Resenha das Famílias Titulares e Grandes de Portugal, Lisboa: Empresa Editora de Francisco Arthur da Silva.
Serpa, H.,2007, História do Desporto em Portugal: Do século XIX à Primeira Guerra Mundial, Lisboa: Instituto Piaget.
Barroso, M., 2001, História do Ciclismo em Portugal, Lisboa: CTT – Clube do Colecionador dos Correios.
Pinto, R. & Lino, M., 1999, UVP-FPC: Cem Anos de Ciclismo, Lisboa: ASA.
Valarinho, J., 1993, Espadas e Floretes, Lisboa: Ed. Autor.
Quina, M. G. coord., 2008, Olímpicos de Portugal: 1912-2008, Lisboa: IDP-IP.
Santos, F.,1989, História Lúdico-Desportiva da Madeira, Funchal: SRE.
Santos, M. S., 2012, Na rota da Roda, Ansião, Jornal Horizonte, n.º238.