“Competitions are for horses, not for artists.”
Béla Bartók
Nunca como agora esteve na ordem do dia falar em herança cultural como fator de desenvolvimento económico. Através das “industriais culturais” operadores e agentes turísticos “fazem-se a ela”. Guias encaminham turistas por ruelas de urbes antigas cujos nomes poucos do ramo sabem explicar e falam do “manuelino” como arte inventada às 6 da manhã de Janeiro na viragem de quinhentos do ano mil. Taxistas e outros ágeis guias falam de cercos de Cruzados de “raça lusa”, puros como os cavalos do Ribatejo, mencionam alguns poetas “alienados” e ainda metem, no mesmo contexto, o futebol, o fado e Fátima “ao barulho”.
Na cidade de Lisboa o património daquela que foi nos primórdios da globalização a “Nova Iorque” da Europa está mesmo na moda (apesar dos cerca de cinco mil imóveis históricos devolutos) e, dentro das “ilhas museológicas” ao ar livre que a cidade criou, os seus operadores turísticos e entidades museológicas satisfazem “o consumo das massas” provenientes de Aquém e de Além Pirinéus, Ásia e Novo Mundo – só a Tap, coisa de que já ninguém sabe muito bem de quem é; terá, recentemente, manchado o imaculado brilho da “Muy Nobre Cidade de Lisboa” bem como da “Invicta Cidade do Porto”…
O compasso dos tempos é veloz e incoerente, e, por isso, muito incerto para quem não acerta passo com as opções que tornam pessoas com faculdades inatas para a vida cultural em simples “desperdício dos tempos”, tempos em que os “aparelhos políticos” tem “obsolescência programada” e a pólvora colorida com que se faz a “guerra dos tronos” hodiernos e se provocam outras “querelas conjugais” pode ser promovida no computador ou no smartphone “à mão”.
“Hoje em dia”: mero truque semântico ao serviço político das “elites” para manter o fatalismo conveniente; há menos emprego…Resulta, pois, que cada vez mais o efémero e o descartável se sobrepõem aquilo que é perene e duradouro, basta mencionar o conceito moderno de upgrade: nos “gadgets”, nas “máscaras sociais” e noutras coisas afins… A pressa de se fabricar “um produto” é tão veloz como o processo de deflação, tudo vale na corrida ao ouro da ilusão. Até a crítica, antigamente considerada de modo substancial por quem era alvo dela e esta cultivava, vale menos que a mais doce e “inocente” das indiferenças.
Nos mais antigos municípios rurais – polos da democracia medieval portuguesa – os serviços turísticos e os sectores de produção tradicional são esquecidos pelos governos e vistos como empecilhos ao crescimento económico, isto é, ao investimento estrangeiro que, por sua vez, contínua a atirar muitos portugueses para a sujeição às taxas de juro desonestas porque muito desiguais dentro de “países parceiros”. A globalização, outra coisa que não, definitivamente, a utopia da “aldeia global”, é quase um “novo deus” que tem por advogado vários diabos, e em nome do qual se violam princípios, atropelam pessoas e o meio ambiente.
O estado é assim duplamente frágil e servil em matérias onde deveria ser “forte”, isto é, ele próprio “competitivo”, consigo mesmo: na justiça financeira e na criação de uma economia verde e amiga das boas tradições. Cada vez mais as suas instituições destituem-se dos nobres valores da educação e da cultura pública, encobertas por um véu de hipocrisia generalizada onde os incultos, os piores iconoclastas, são os “economistas” disfarçados de “políticos sofisticados” que definem, “cooperativamente” e à frente de estatísticas encomendadas nas quais já ninguém confia; a “política cultural do país”, os mesmos que tanto aplaudem como contribuem para segregar e marginalizar a cultura social e de intervenção, seja nos bairros arruinados ou no “vazio” dos auditórios.
As nossas indústrias tradicionais definham, só prosperam as mais subsidiárias do “marketing global”: entre o gosto, low cost, de “burguês pedante, mas avaro, e um “novo-riquismo” despesista, mas fatela, ao modo “Casa dos Segredos”; promovido por uma classe de “aristocratas assalariados”: sardinhas, azeite, queijos, vinho, doçaria. Ainda assim a nossa pesca afunda-se, a agricultura de subsistência, a melhor e mais saudável; é mal promovida, o verdadeiro artesanato extingue-se, e a nossa arquitetura popular também.
É bem possível até que um turista atraído à Madeira fique na dúvida se o nosso cristológico Galo de Barcelos feito na China nasceu numa capoeira da Fajã da Ovelha se em Trás-os-Montes. Uma vez mais a culpa não é dos nossos irmãos Galegos, nem de outras gentes do mundo: quem “nos depena” nunca “pula a cerca”. Enfim, coisas de “etnologia” e “folclore inventado”, coisas do país “pobre e desinstruído”, a “oeste” do grande progresso que “bancários competitivos”, atentos e “iluminados observadores”, mais outros tantos negociantes cosmopolitas de Lisboa, Londres ou Berlim nos quiseram trazer.
A isso e tudo o mais o regime agradece, porém apela a que outros venham ver o que por cá já poucos são os que sabem fazer, cada vez menos segundo os costumes e saberes antigos que nos conferiram identidade e soberania. As pessoas idosas que levantaram o país debaixo de ditadura (o país que a torneira da euforia consumista e despesista escoou e agora ainda escoa com os mais ricos a ganharem dez vezes mais que os mais pobres;) já não são ouvidas e no lugar delas sábios e outros “socráticos executivos”, com formação em neosofismo, comandam os seus destinos do modo mais vaidoso e desumano a partir do “todo o poderoso facebook” e de outros sensacionalistas canais de media. Entretanto, vemos a bolha imobiliária depois de estoirada arrastar ainda arquitetos para o desemprego, muitos dos quais vítimas da falácia perniciosa de que “bom arquiteto” só de raiz constrói.
No Funchal, chamada por alguém noutro século “Piccoli Lisbona”, e apesar da bem-sucedida “ilha cultural” da Zona Velha, mais alguns projetos estudantis de louvar e outros projetos camarários (onde se podem incluir conferências de reabilitação acompanhadas em surdina pelos “homens das promessas”) e o trabalho normal dos órgãos de governo, nem estratégias de conservação integrada à vista, nem bons operadores turísticos no âmbito cultural, muito menos visitas em série com critério e proveito pedagógico e económico algum, sobretudo para os comerciantes e mesteirais que continuam a acreditar e a dinamizar os seus núcleos históricos. Há que imitar Lisboa, sem lhe copiar os erros…
Grave é faltarem, ainda, as importantes “cartas de património”: arquitetónico, urbanístico, etnográfico, literário, etc; que felizmente podem sempre dar o certeiro tiro no pé de algum insuspeito e ambicioso projeto de “interesse público”!
Edifícios com “estórias para contar” ameaçam ruir, há toda uma cidade histórica devoluta – tão decrépita como decrépito estava o governo que cessou funções. Estimam-se às dezenas os imóveis com mais de cinquenta e cem anos abandonados à mercê dos elementos, votados ao esquecimento; enquanto promissores “CEO” andaram anos alvitrando as melhores jogadas nas “sedes palacianas” de competitivas “Parcerias Público-Privadas” para, entre outras coisas, aformosearem as casas, moradias de luxo e ruas onde moram.
Já em relação aos simpáticos turistas e madeirenses que pela cidade deambulam, muitos contornam a “Esquina do Mundo”, desembocam na “Praça do Povo” e depois lá vão, seguindo o peripatético “roteiro” com a “memória de peixe” ativada, ver o muito mal orçamentado e insólito “corpo apático e contraturado” que representa, alegadamente, um extraordinário futebolista nascido no Funchal, mas “criado em Lisboa”.
Em simultâneo a “muito idosa” Capela de São Paulo (contígua à casa onde viveu um poeta “qualquer” da história da nossa cultura recente…) continua a aguardar que alguém se lembre dela, nos tempos onde importa mais evitar que algum “camarada chinês” perca uma ação na bolsa dos falsos valores imobiliários do que preservar as melhores e mais instrutivas das nossas avoengas riquezas: “capelinhas” e outras “devoções” mundanas de “passeio público”, que por sinal só importam quando brilha a expetativa da reabilitação pomposa e o obséquio dos “ilustres visados” de ultima hora…
Gente empreendedora e muito orgulhosa do progresso e, neste capítulo, do nosso riquíssimo “catálogo do passado”, “catálogo” que às tantas pode servir de pretexto para a “liberalização” de novas “eutanásias patrimoniais” e, com elas, desnecessárias urbanizações (custeados com os dinheiros honestos através das tramoias da banca) onde habitarão pessoas requintadas, finas e “eternas”, mas culturalmente amnésicas e com uma visão totalmente desfocada do passado.