Cavaco falou. Por duas vezes. Na primeira, período em que entraria em reflexão, fez o discurso do incerto, da fábula, onde se perspectivava que a sua intenção seria a de dar posse a Passos Coelho porque a alternativa de esquerda parecia tão utópica quanto a existência de uma União Europeia de Estados livres aos olhos do mundo em 1933.
Na segunda vez, momento em que anuncia indigitar Passos Coelho, profere o discurso mais faccionário que alguma vez ouvi em direto – “Cuidado com os compromissos internacionais, na NATO, na Europa e na zona euro”, ou seja, nada de comunistas no Governo. Este segundo discurso, felizmente, conseguiu o que ninguém sequer sonhou conseguir, estando na direita: uniu a esquerda e o uniu o PS em torno de um desígnio nacional de fazer respeitar a Constituição da República Portuguesa e a vontade do povo, ainda que a principal figura do Estado não o reconheça.
Deve ser o partido mais votado a governar? Sem sombra de dúvida. Mas, terá o partido mais votado a capacidade de garantir ao país a estabilidade governativa de que necessita? Neste momento, não. Não obstante, António Costa não foi, claramente, sufragado nas urnas enquanto Primeiro-Ministro e terá que carregar esse anátema durante muito tempo, mas poderá vir a governar com maior estabilidade do que o partido mais votado.
Muitos são aqueles que se sentem ultrajados quando se coloca a hipótese de não ser o partido mais votado a governar mas, meus senhores, não seria algo inédito – basta olhar para a Europa! As regras são claras. Num país demasiado habituado a maiorias absolutas, este é o melhor cenário com que nos poderíamos deparar para que todos percebam que a política em Portugal mudou. É a democracia a funcionar. É a vontade do povo.
E o povo diz que devem negociar, porque o tempo das maiorias absolutas acabou; que devem entender-se e lutar pelo povo em vez de alimentar guerras e guerrinhas de umbigos, onde o ego daqueles que em nada contribuem para mudar o estado actual de coisas parece valer mais do que os milhares de pessoas no país que vivem abaixo do limiar da pobreza.
É certo que a PàF verá chumbado tanto o Programa de Governo quanto o respectivo Orçamento de Estado. Cavaco pedirá entendimentos, mas sem sorte. Infelizmente, para Cavaco, um Governo de Gestão será inevitavelmente encarado como um Governo Tecnocrático, e a própria condição de contrato a termo certo fragilizaria o país como nunca se fez.
O acordo à esquerda existe. Poderá Cavaco rejeitar um Governo de Esquerda em detrimento de um Governo de Gestão que trará o maior rombo financeiro ao país de todos os tempos apenas e tão-somente por motivos partidários? Poder, pode. Não deve, mas pode. E, neste cenário, voltaremos às maiorias absolutas, mas desta feita, à esquerda.