Afinal os “velhos” são mesmo trapos
Manuel Pedro Freitas / Pediatra
Manuel, nome fictício, nasceu algures em São Vicente, localidade também fictícia, há 83 anos. Nos anos 50 do século passado emigrou com destino à Venezuela e, por lá ficou. Nunca casou, muito provavelmente porque o trabalho ganhou dianteira nas suas preferências e, estando na companhia de outros familiares, a necessidade de partilhar a sua vida com uma companheira ou esposa nunca foi uma necessidade. Também, talvez pela mesma razão, rapidamente esqueceu os amigos e familiares deixados para trás, cortando, talvez de forma inconsciente, todos os laços com a sua terra natal.
Com o passar dos anos e o eclodir dos primeiros sinais de velhice, a quebra de produtividade e as primeiras lacunas de memória, de membro ativo e contributivo para o orçamento familiar, passou a constituir um peso, ao ponto de o despacharem para a Madeira, tal como se de uma encomenda se tratasse.
Para o efeito, adquirem uma passagem sem regresso entre a Venezuela e a Madeira e colocam-no dentro do avião. Acompanham-no o espólio de uma vida constituído por uma pequena mala de mão, onde algumas peças de vestuário se podiam movimentar à vontade e uma carteira de bolso com 150 euros, 300 bolívares e um pequeno “bilhete” contendo a inscrição de um número de telemóvel que se soube, mais tarde, ser de uma sobrinha que nunca tinha visto o tio mais magro ou mais gordo e que até o julgava falecido.Ao chegar à Madeira, Manuel, não sabia quem era nem onde estava e, a solução foi entregá-lo aos cuidados dos Serviços Sociais Regionais.
Maria, também nome fictício, é outra “velha” abandonada no hospital pela família numa altura em que se tornou senil e dependente. Um dia, para surpresa dos prestadores de cuidados hospitalares, os familiares foram buscá-la. Contudo, dois dias depois, o tempo necessário para fazer prova de vida e continuarem a receber a reforma, voltaram a abandoná-la no mesmo local.
O Francisco, também nome fictício, era um “velho” que, relegado à situação de dependente de terceiros, passou a ocupar um quarto de uma pobre residência onde a filha, anualmente, fazia o presépio. Com o Natal e chegado o momento de o fazer, mas estando o quarto ocupado logo tira da cartola que nem um mágico a solução: Despejar o “velho” e depositá-lo no hospital durante o tempo suficiente para fazer, admirar e desmanchar o presépio.
Estas três histórias são exemplos das muitas centenas de situações de abandono dos “velhos” nos hospitais, mas não das suas reformas, onde se misturam muitos outros casos dramáticos de falta de condições físicas, financeiras e humanas para, nos domicílios, lhes prestar cuidados.
Numa altura em que a legislação parece dar mais direitos aos animais do que aos “velhos” e onde, em consonância com esta nova filosofia de ver o mundo, surgem em catadupa movimentos e partidos protetores dos animais, julgo importante refletir sobre esta temática. Permitam-me, por isso, a minha provocação com a seguinte questão: Será que os “velhos” também não merecem um tratamento legislativo pelo menos igual ao que foi recentemente protagonizado para os animais?
Hoje, em virtude da melhoria dos cuidados de saúde, vive-se mais tempo. Contudo, como nem sempre viver mais tempo significa viver sem limitações, a velhice está, na maior parte das vezes, associada a muita dependência de terceiros. Contudo, nem as habitações estão preparadas para lidar com estas situações e nem sempre os familiares, porque têm de sair para trabalhar, têm disponibilidade para lhes prestar cuidados ou pagar a uma pessoa que o faça e, muito menos, para os colocar em lares. Para além disso, muitos idosos, devido ao seu grau de dependência ou à logística necessária para lhes prestar cuidados, obrigam a esforços redobrados, muitos eles inacessíveis ou incomportáveis à maior parte das famílias.
A atitude para com os idosos tem-se vindo a modificar ao longo dos anos, pelo que se torna necessário compreender esta transformação para que também se possam tomar medidas adequadas a um final de vida com alguma dignidade.
De problema de resolução estritamente familiar, o “velho” passou definitivamente a ser um problema do Estado e dos seus organismos de Segurança Social. Não há volta a dar! Sem meios ou condições para cuidar dos seus idosos não autónomos, as famílias transferiram essa responsabilidade para infraestruturas sociais, nomeadamente para lares. Na sua impossibilidade, quer por falta de vaga ou de condições financeiras, recorrem cada vez mais ao seu abandono nos hospitais. Ainda que os mais lúcidos vejam a opção dos seus familiares com muita mágoa, nada podem fazer porque não têm meios nem destreza física para uma vida autónoma. Para outros, este “abandono” significa uma espécie de taluda uma vez que passam a beneficiar de melhores cuidados.
É pois importante compreender o que leva uma família a abandonar um familiar seu no hospital, às vezes pai, mãe, avó, sogro ou sogra, em vez de os recriminar. É importante providenciar soluções que venham de encontro às atuais mudanças de atitude perante a velhice e que, naturalmente, implicam não só medidas que retardem os efeitos do envelhecimento mental e físico, como também a construção de espaços condignos e bem infra-estruturados para os receber quando a dependência começa a ser crítica e os familiares não lhes possam prestar os cuidados necessários.
Porque o número de abandonos nos hospitais não pára de crescer, mas as suas reformas continuam a ser pagas aos seus familiares, há quem defenda, e bem, com o objetivo de travar este tipo de comportamento, que as reformas sejam também transferidas para o hospital. Contudo, esta solução para além de não ter grandes efeitos práticos, naqueles casos em que resulta, só resulta porque os familiares vão atrás do dinheiro. Não poderemos esquecer, no entanto, que o “velho”, continua a ser “persona non grata” em casa, porque dá maçada e, por isso, corre o risco de ser alvo de maus tratos. As entidades públicas ficam satisfeitas porque com uma simples medida desocuparam uma cama do hospital, mas esquecem-se que condenaram o “velho” a uma “vida de cão” e que nenhum dos ativistas pela defesa dos animais irá denunciar esta situação à PSP ou à GNR.
Apesar de hoje, a generalidade das autarquias estar a fazer avultados investimentos no apoio à terceira idade, através de centros de dia com o objectivo de lhes melhorar a qualidade de vida e de retardar os efeitos do envelhecimento dos idosos independentes ou com dependências ligeiras é importante que também focalize mais a sua intervenção nos dependentes.